Por Marcelo Brasileiro
PASTORES QUE ABANDONAM O PÚLPITO ENFRENTAM O DIFÍCIL CAMINHO DA AUTO-ACEITAÇÃO E DO RECOMEÇO.

Criado numa igreja pentecostal, Nilton exerceu a
liderança da mocidade já aos 16 anos, e logo sentiria o chamado – expressão
que, no jargão evangélico, designa aquele momento em que o indivíduo percebe-se
vocacionado por Deus para o ministério da Palavra. Mas foi numa denominação do
ramo protestante histórico, a Igreja Presbiteriana Independente (IPI), na
cidade de São Paulo, que ele se estabeleceu como pastor. Graduado em Direito,
Teologia e Filosofia, tinha tudo para ser um excelente ministro do Evangelho,
aliando a erudição ao conhecimento das Sagradas Escrituras. Contudo, ele chegou
diante de uma encruzilhada. Passou a duvidar se valeria mesmo a pena ser um
pastor evangélico. Afinal, a vida não seria melhor sem o tal “chamado
pastoral”?
As razões para sua inquietação eram
enormes. Ordenado pastor desde 1995, foi justamente na igreja que experimentou
seus piores dissabores. Conheceu a intriga, lutou contra conchavos,
desgastou-se para desmantelar o que chama de “estrutura de corrupção” dentro de
uma das igrejas que pastoreou. Mas, no fim de tudo isso, percebeu que a luta
fora inglória. José Nilton se enfraqueceu emocionalmente e viu o casamento ir
por água abaixo. Mesmo vencendo o braço-de-ferro para sanar a
administração de sua igreja, perdeu o controle da vida. A mulher não foi capaz
de suportar o que o ministério pastoral fez com ele. “Eu entrei num processo de
morte.
Adoeci e tive que procurar ajuda médica para me restabelecer”, conta.
Com o fim do casamento, perdeu também a companhia permanente da filha pequena,
uma das maiores dores de sua vida.
Foi preciso parar. No fim de
2010, José Nilton protocolou uma carta à direção de sua igreja requisitando a
“disponibilidade ativa”, uma licença concedida aos pastores da denominação.
Passou todo o ano de 2011 longe das funções ministeriais. No período, foi
exercer outras funções, como advogado e professor de escola pública e de
seminário. “Acho possível servir a Jesus, independentemente de ser pastor
ou não”, raciocina, analisando a vida em perspectiva. “Não acredito mais que um
ministério pastoral só possa ser exercido dentro da igreja, que o chamado se
aplica apenas dentro do templo. Quebrei essa visão clerical”. Reconstruindo-se
das cicatrizes, Nilton casou-se novamente. E, este ano retornou ao púlpito,
assumindo o pastoreio de uma igreja na zona leste de São Paulo. Todavia, não
descarta outro freio de arrumação. “Acho que
a vida útil de um líder é de três anos”, raciocina. “É o período em que ele
mantém toda a força e disposição. Depois, é bom que esse processo seja
renovado”. É assim que ele pretende caminhar daqui para frente: sem fazer do
pastorado o centro ou a razão da sua vida.
Encontrar o equilíbrio no ministério
não é tarefa fácil. Que o digam os ex-pastores ou pastores afastados do púlpito
que passam a exercer outras atividades ou profissões depois de um período
servindo à igreja. Uma das maiores denominações pentecostais do país, a Igreja
do Evangelho Quadrangular (IEQ), com seus 30 mil pastores filiados
– entre
homens e mulheres –, registra uma deserção de cerca de 70 pastores por mês
desde o ano passado. Os números estão nas circulares da própria igreja. Não é
gente que abandona a fé em Cristo, naturalmente; em sua maioria, os religiosos
que pedem licença ou desligamento das atividades pastorais continuam vivendo
sua vida cristã, como fez José Nilton no período em que esteve afastado do
púlpito. É que as pressões espirituais e as demandas familiares e pessoais dos
pastores, nem sempre supridas, constituem uma carga difícil de suportar ao
longo doa anos. Some-se a isso os problemas enfrentados na própria igreja, as
cobranças da liderança, a necessidade de administrar a obra sob o ponto de
vista financeiro e – não raro – as disputas por poder e se terá uma ideia do
conjunto de fatores que podem levar mesmo aquele abençoado homem de Deus a
chutar tudo para o alto.
A própria IPI, onde José Nilton
militou, embora muito menor que a Quadrangular – conta com cerca de 500 igrejas
no país e 690 pastores registrados –, teria hoje algo em torno de 50 ministros
licenciados, número registrado em relatório de 2009. Pode parecer pouco, mas
representa quase dez por cento do corpo de pastores ativos. Caso se projete
esse percentual à dimensão da já gigantesca Igreja Evangélica brasileira, com
seus aproximadamente 40 milhões de fiéis, dá para estimar que a defecção dos
púlpitos é mesmo numerosa. De acordo com números da Fundação Getúlio Vargas, o
número de pastores evangélicos no país é cinco vezes maior do que a de padres
católicos, que em 2006 era de 18,6 mil segundo o levantamento Centro de
Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais. Porém, devido à informalidade
da atividade pastoral no país, é certo que os números sejam bem maiores.
FERIDOS QUE FEREM
O chamado pastoral sempre foi o mais
valorizado no segmento evangélico. Por essa razão, é de se estranhar quando
alguém que se diz escolhido por Deus para apascentar suas ovelhas resolva
abandonar esse caminho.
Nos Estados Unidos, algumas pesquisas tentam explicar
os principais motivos que levam os pastores a deixar de lado a tarefa que um
dia abraçaram. Uma delas foi realizada pelo ministério LifeWay, que, por
telefone, contatou mil pastores que exerciam liderança em suas comunidades
eclesiásticas. E o resultado foi que, apesar de se sentirem privilegiados pelo
cargo que ocupavam (item expresso por 98% dos entrevistados), mais da metade,
ou 55%, afirmaram que se sentiam solitários em seus ministérios e concordavam
com a afirmação “acho que é fácil ficar desanimado”. Curiosamente, foram os
veteranos, com mais 65 anos, os menos desanimados. Já os dirigentes das
megaigrejas foram os que mais reclamaram de problemas. De acordo com o
presidente da área de pesquisas da Life Way, Ed Stetzer – que já pastoreou
diversas igrejas –, a principal razão para o desânimo pode vir de expectativas
irreais. “Líderes influenciados por uma mentalidade consumista cristã ferem
todos os envolvidos”, aponta. “Precisamos muito menos de clientes e muito mais
de cooperadores”, diz, em seu blog pessoal.
Outras pesquisas nos EUA vão além. O
Instituto Francis Schaeffer, por exemplo, revelou que, no último ano, cerca de
1,5 mil pastores têm abandonado seus ministérios todos os meses por conta de
desvios morais, esgotamento espiritual ou algum tipo de desavença na igreja.
Numa pesquisa da entidade, 57% dos pastores ouvidos admitiram que deixariam
suas igrejas locais, mesmo se fosse para um trabalho secular, caso tivessem
oportunidade. E cerca de 70% afirmam sofrer depressão e admitem só ler a Bíblia
quando preparam suas pregações. Do lado de cá do Equador, o nível de
desistência também é elevado, ainda mais levando-se em conta as grandes
expectativas apresentadas no início da caminhada pastoral pelos calouros dos
seminários. “No começo do curso, percebemos que uma boa parte dos alunos possui
um positivo encantamento pelo ministério. Mais adiante, já demonstram
preocupação com alguns dilemas”, observa o diretor da Faculdade Teológica
Batista de São Paulo, o pastor batista Lourenço Stélio Rega. Ele estima que 40%
dos alunos que iniciam a faculdade de teologia desistem no meio do caminho. Os
que chegam à ordenação, contudo, percebem que a luta será uma constante ao
longo da vida ministerial – como, aliás, a própria Bíblia antecipa.
E, se é bom que o ministro seja
alguém equilibrado, que viva no Espírito e não na carne, que governa bem a
própria casa, seja marido de uma só mulher (ou vice-versa, já que, nos tempos
do apóstolo Paulo não se praticava a ordenação feminina) e tantos outros
requisitos, forçoso é reconhecer que muita gente fica pelo caminho pelos
próprios erros. “O ministério é algo muito sério” lembra Gedimar de Araújo,
pastor da Igreja Evangélica Ágape em Santo Antonio (ES) e líder nacional do
Ministério de Apoio aos Pastores e Igrejas, o Mapi. “Se um médico, um advogado
ou um contador erram, esse erro tem apenas implicação terrena. Mas, quando um
ministro do Evangelho erra, isso pode ter implicações eternas.”
Desde que foi criado, há 20 anos, em
Belo Horizonte (MG), como um braço do ministério Servindo Pastores e Líderes
(Sepal), o Mapi já atendeu milhares de pastores pelo país. Dessa experiência,
Gedimar traça quatro principais razões que podem ser cruciais para a
desmotivação e o abandono do ministério. “Ativismo exagerado, que não deixa
tempo para a família ou o descanso; vida moral vacilante, que abre espaço para
a tentação na área sexual; feridas emocionais e conflitos não resolvidos; e
desgaste com a liderança, enfrentando líderes autoritários e que não cooperam”,
enumera. Para ele, é preciso que tanto os membros das igrejas quanto as
lideranças denominacionais tenham um cuidado especial com os pastores. “Muitos
sofrem feridas, como também, muitas vezes, chegam para o ministério já
machucados. E, infelizmente, pastor ferido acaba ferindo”.
Quanto à responsabilidade do próprio
pastor com o zelo ministerial, Gedimar é taxativo: “É melhor declinar do
ministério do que fazê-lo de qualquer jeito ou por simples necessidade”. A rede
de apoio oferecida pelo Mapi supre uma lacuna fundamental até mesmo entre os
pastores – a do pastoreio. “É preciso criar em torno do ministro algumas
estruturas protetoras. É muito bom que o líder conte com um grupo de outros
pastores onde possa se abrir e compartilhar suas lutas; um mentor que possa
ajudá-lo a crescer e acompanhamento para seu casamento e família e, por fim,
ter companheiros com quem possa desenvolver amizades e relacionamentos
saudáveis e sólidos”, enumera.
EXPECTATIVAS

No entender do dirigente da OPBB,
esse acúmulo de funções mina a energia e o potencial do obreiro para o serviço
de Deus. A associação reúne aproximadamente dez mil pastores batistas e Bahia
observa isso no seio da própria entidade: “Creio que metade deles sofra com a
fuga das atividades pastorais para as seculares”. Contudo, ele acredita que deixar
o ministério não é algo necessariamente negativo. “A pessoa pode ter se sentido
vocacionada e, mais adiante na vida, por meio da experiência, das orações e
interação com outros pastores, é perfeitamente possível chegar à conclusão que
a interpretação que fez sobre seu chamado não foi adequada e sim emotiva”.
Quando, já na meia idade, casado e
com dois filhos, ingressou no Seminário Presbiteriano do Norte (SPN), na
capital pernambucana, Recife, Francisco das Chagas dos Santos parecia um menino
de tanto entusiasmo. Nem mesmo as críticas de parentes para que buscasse uma
colocação social que lhe desse mais status e dinheiro o desmotivou. “A igreja,
para mim, é a melhor das oportunidades de buscar e conhecer meu Criador para
que, pela graça, eu continue com firmeza a abrir espaço em meu coração para que
ele cumpra sua vontade em mim, inclusive no ministério pastoral”, anotou em sua
redação para o ingresso no SPN, em 1998. Ele formou-se no curso, foi ordenado
pastor em 2003 e dirigiu igrejas nas cidades de Garanhuns e Saloá.
Hoje, aos 54 anos, Francisco trabalha
como servidor público no Instituto Agronômico de Pernambuco. Ainda não curou
todas as feridas e ressentimentos desde que, em 2010, entregou seu pedido de
desligamento da denominação. Ele lamenta o tratamento recebido pelos seus
superiores enquanto foi pastor. “Minha opinião sobre igreja não mudou. Nunca
planejei um dia pedir licença ou despojamento do ministério. Mas entendo que
somos o Corpo de Cristo, e, se uma unha dói, todos nós estamos doentes”, pondera.
“Não é possível ser pastor sem pensar em restaurar vidas – e existem muitas
vidas precisando de conserto, inclusive entre nós, pastores”.
A vida longe dos púlpitos ainda não
foi totalmente sublimada e Francisco sabe bem que será constantemente indagado
sobre sua decisão de deixar o ministério. “A impressão é que você deixou um
desfalque, que adulterou ou algo parecido”, observa. Ele não considera voltar a
pastorear pela denominação na qual se formou, porém não consegue deixar de
imaginar-se como pastor. “Uma vez pastor, pastor para sempre”,
recita, “muito embora as pessoas, em geral, acreditem que seja necessário um
púlpito.”
Porta de saída
Pesquisa realizada nos Estados Unidos
traçou um panorama dos problemas da atividade pastoral...
80% deles sentem-se despreparados para o
ministério
70% afirmam só ler a Bíblia quando precisam preparar
seus sermões
40% já tiveram casos extraconjugais
30% reconhecem ter reduzido as próprias
contribuições às igrejas após a crise financeira
... e avaliou as consequências disso:
1,5 mil pastores deixam o púlpito todos os
meses
5 mil religiosos buscavam emprego secular
no ano de 2009, mais do que o dobro do que ocorria em 2005
2 a 3 anos de
ministério é o tempo médio em que os pastores deixam suas igrejas, sendo em
direção a outras denominações ou não
Fontes: Barna Group, Christian Post, The Wall Street Journal, Instituto
Francis A. Schaeffer e Instituto Jetro
Rebanho às avessas
A maioria dos pastores que se afastam
de suas atividades ministeriais não abandona a fé em Cristo. Cada um deles, a
seu modo, mantém sua vida espiritual e o relacionamento pessoal com Deus. Mas
há quem saia do púlpito pela porta dos fundos, renegando as crenças defendidas
com ardor durante tantos anos de atividade sacerdotal. Para estes – e, é bom
que se diga, trata-se de uma opção nada recomendável –, existe a Freedom from Religion Foundation (“Fundação para o
fim da religião”), entidade criada por ninguém menos que o mais famoso
apologista do ateísmo da atualidade, o escritor britânico Richard Dawkins,
autor do best-seller Deus, um delírio. Ele
e um grupo de céticos lançaram o Projeto Clero, iniciativa que visa a apoiar
ex-clérigos – pastores, padres, rabinos – no reinício da vida longe das funções
religiosas. “Sacerdotes que perdem sua fé sofrem uma penalização dupla. Eles
perdem seu emprego e, ao mesmo tempo, sua família e a vida que sempre tiveram”,
argumenta Dawkins, no site do projeto. Não se tem notícia confiável de quantos
ex-líderes aderiram ao Projeto Clero, mas parece óbvio que a ideia do refúgio
ateu não é apenas abraçar sacerdotes cansados da vida religiosa, mas também
engrossar o rebanho crescente daqueles que repudiam a possibilidade da
existência de Deus.
Mudança difícil
Não foi uma escolha fácil. Quando o
ex-pastor batista Osmar Guerra decidiu que seu lugar não era mais o púlpito,
logo foi fustigado por olhares de decepção das pessoas que estavam ao seu redor
e acreditavam em seu trabalho espiritual. Afinal, desde menino ele era o
“pastorzinho” de sua igreja em Piracicaba, no interior paulista.
Desinibido e
articulado, o garoto, bem ensinado pelos pais na fé cristã, apresentava uma
natural vocação para o pastorado. Por isso, foi natural sua decisão de
matricular-se Faculdade Teológica Batista de São Paulo e, após os anos de
estudo, assumir a função de pastor de adolescentes da Igreja Batista
da Água Branca (IBAB), na capital paulista.
Começava ali uma promissora carreira
ministerial. Osmar dividia seu trabalho entre as funções na igreja e as
aulas de educação cristã, lecionadas no tradicional Colégio Batista.
Tempos depois, o pastor transferiu-se para outra grande e prestigiada
congregação, a Igreja Batista do Morumbi. Mas algo estava fora de sintonia, e
Osmar sabia disso. Toda sua desenvoltura na oratória, sua capacidade de
mobilização e seu espírito de liderança poderiam não ser, necessariamente,
características de uma vocação pastoral. E, como dizem os jovens que ele tanto
pastoreou, pintou uma dúvida: seu lugar
era mesmo diante do rebanho? “Eu era um excelente animador. Mas me
faltava vocação, e fui percebendo isso cada vez mais”.
O novo caminho, ele sabia, não seria
compreendido com facilidade pela família, pelos amigos e pelas ovelhas. Mas ele
decidiu voltar a estudar, e escolheu a área de rádio e TV. E, mesmo ali, não
escapou do apelido de “pastor”, aplicado pela turma. Quando conseguiu um
estágio na TV Record, percebeu que ficava totalmente à vontade entre os
cenários, as produções e os auditórios. Com seu talento natural, Osmar
deslanchou, e o artista acabou suplantando o pastor. Depois de pedir demissão
da igreja, em 2005, ele galgou posições na emissora e hoje é o produtor de um
dos programas de maior sucesso da casa, O melhor do Brasil,
apresentado pelo Rodrigo Faro.
“Durante muito tempo, fiquei em
crise”, reconhece hoje, aos 31 anos. “Tive medo de tomar a decisão de deixar de
ser pastor. Mas, hoje, sinto-me mais confiante e honesto comigo mesmo e
perante os outros”, garante. Longe do púlpito, mas não de Jesus, Osmar Guerra
continua participativo na sua igreja, a IBAB, onde toca e canta no louvor. De
sua experiência, ele se acha no direito de aconselhar os mais jovens. “Defendo
que, antes do seminário, as pessoas busquem formação em outras áreas, ainda
mais quando são novas”, diz. Isso, segundo ele, pode abrir novas possibilidades
se o indivíduo, por um motivo qualquer, sentir-se desconfortável no púlpito.
Contudo, ele não descarta o valor de um chamado genuíno: “Se, mesmo assim, a
vontade de se tornar um pastor continuar, isso é sinal de que o
caminho pode ser esse mesmo.”
Fonte: cristianismohoje.com.br
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